domingo, 9 de fevereiro de 2014

Projecto Sem Título

Eu abro os olhos e só vejo o escuro. Nada cheiro, nada sinto, nada oiço. Tento falar, mas por mais que abra a minha boca, nenhum som sai. Entro em pânico, não consigo evitar; sinto como se estivesse a ser alvo de um rapto qualquer. E eu tenho medo do que se passa porque não me lembro de ter lá chegado.
O chapinhar. O primeiro som que oiço. E é um som de um passo a passar numa poça de água. De repente, sinto a minha pele nua a tocar no chão. E sinto o chão húmido, como se estivesse num fio de água. Pergunto-me como é que aconteceu, mas mais do que isso, tenho medo da minha vida, porque me dou conta de que, afinal, não me encontro tão sozinho quanto eu pensava.
Este cheiro... o cheiro a medo. Não o meu medo; é como se emanasse de algum lugar. Ou de alguém. Cada vez mais oiço o chapinhar, mais e mais próximo. Não me mexo; sei que não sou eu a mexer. E ainda não consigo ver bem. Sei que, quem quer que esteja a caminho de mim, não abona nada de positivo. É uma sensação que tenho.
De repente, vejo linhas vermelhas à minha frente, como que contornos de uma criatura. E conforme se aproxima, cada vez me dou conta que vejo uma criatura disforme, uma sombra hostil. Duas luzes vermelhas no todo e um sorriso branco maléfico denunciam a cara da criatura: uma sombra sem forma que ganha pelo factor de susto. Quando abre a sua boca, uma língua fina e longa e vermelha sai para fora, emanando uma nuvem escura. Medo. E então oiço a sua voz. Assustadora mas familiar. Ainda que dotada de uma sombra, é a minha voz.
A sombra declara-me a sua identidade, ao dizer que ela é eu, o verdadeiro eu que mantenho escondido dentro de mim e que não me atrevo a mostrar a vivalma. Tal revelação deixa-me em choque e paralisado. Tento não ouvir o que ela me diz, mas os meus ouvidos traem-me. E ela continua a falar sobre si mesma: como é traiçoeira, cruel, negativa. E não posso fazer mais nada senão ouvir. Da minha boca saem a pergunta sobre aonde estou. A sombra, com os olhos esbugalhados, simplesmente cria uma mão e estala os dedos.
Uma torrente de sons invadem-me a cabeça. Sirenes, vozes, estalidos, explosões. Tudo ao mesmo tempo e os meus joelhos falham-me e caio no chão, as minhas mãos agarradas à cabeça.
De repente, bip. Bip. Bip. A escuridão dá lugar a um quarto de hospital, um hospital que, de alguma forma, me parecia familiar, como se tivesse estado lá. A sombra aparece ao meu lado e aponta ao homem deitado. E pude ver, horrorizado, de quem se tratava o homem. Era eu. Podia estar repleto de tubos e ligaduras, mas sentia, no fundo do fundo, que aquele era eu. "Morri", pensei; e, como se tivesse lido os meus pensamentos, a sombra depressa nega tal possibilidade, que eu estava em coma. Um novo estalo de dedos, e estou de volta à escuridão. Mas algo estava diferente desta vez.
Ali, reparei em duas portas lado a lado. Não haviam paredes à sua voltas e não estavam deitadas no chão, simplesmente estavam em pé, paradas, como se estivessem a bloquear um caminho cada uma. Estranhei aquele cenário bizarro, mas a sombra tratou de explicar: eu tinha uma escolha. Uma porta acordava-me do coma e devolvia-me ao mundo cruel que tanto mal me direccionou, enquanto que a outra me levaria para o outro mundo, o que significaria necessariamente que eu iria morrer aonde eu estava. A sombra fartava-se de me relembrar de memórias desagradáveis, provas passadas que me quase convenciam a optar pela porta da morte. E eu ia caindo cada vez mais nas suas conversas, cada vez mais tentado a aceitar a oferta. E quando ia a agarrar a maçaneta da porta, uma luz brilhou atrás de mim. Não consegui resistir e olhei para trás e o que vi deixou-me de queixo caído.
Uma forma luminosa brilhava atrás. Emanava uma espécie de aura azul cristalina à sua volta. E conseguia sentir uma espécie de paz, alegria, uma pureza que nunca tinha visto antes. A sombra, ao ver a luz, ficou agressiva e partiu ao ataque, mas a luz, estalou os dedos e a escuridão que antes rodeava o local começou a emanar uma luz purificadora. E a sombra não se encontrava lá. Ao perguntar quem a luz era, a sua voz era-me familiar. Era eu, mais uma vez, mas o seu tom era calmo, puro, cristalino. Ao perguntar-lhe o que lá fazia, apenas apontou às portas, que ainda lá permaneciam. No entanto, instruiu-me a sentar-me e ponderar nas escolhas em minha frente. E assim o fiz: sentei-me, fechei os olhos e ponderei seriamente nas escolhas que tinha em minha frente e nas suas consequências. Demorei sabe-se lá quantas horas; parecia que o tempo se esticasse, como um elástico.
E escolhi.

A vida é cruel, é verdade. Nunca se pode verdadeiramente dar a graxa a todos, porque vão haver pessoas que te vão pôr abaixo, que te irão desdenhar por cada coisa menor que faças. Mas no fim, se tiveres quem te apoie no final, que esteja lá por ti, por muito mal directo ou indirecto que lhes tenhas feito, não valerá a pena viver num mundo tão fora de ordem como o nosso? E assim escolhi, pela porta da vida. Porque não posso, de qualquer forma que seja, deixar mal quem me quer bem do fundo do coração. Eles não o merecem.